Por Reinaldo Martinazzo
Desde os tempos da Grécia Antiga, os mitos exerceram fascínio sobre as sociedades. Heróis sobre-humanos, com força desproporcional, protegidos ou amaldiçoados por deuses, eram elevados a figuras quase sagradas. Suas histórias, por vezes trágicas, por vezes gloriosas, alimentavam crenças, moldavam valores e sustentavam o imaginário coletivo.
Curiosamente, ainda hoje encontramos ecos dessa mitologia — não nos templos, mas nas empresas. Travestidos de “líderes lendários”, alguns executivos se comportam como se fossem deuses corporativos, infalíveis e intocáveis. Distribuem ordens como se empunhassem espadas, ignorando o diálogo, a escuta e o contraditório. Criam à sua volta uma cultura de culto, onde a força bruta da hierarquia substitui o poder transformador da liderança consciente.
E o que é pior: em muitas dessas organizações, o mito não é apenas o líder — é a própria instituição. Empresas que foram gigantes em suas áreas se apegam ao próprio passado glorioso como quem segura uma estátua rachada, com medo de encarar a necessidade de reconstrução. Presas ao mito, perdem o mercado.
O peso do mito e a cegueira estratégica
Os heróis gregos, como Aquiles, tinham um ponto vulnerável. O calcanhar. Nas empresas, esse ponto frágil frequentemente é a miopia de marketing, conceito cunhado por Theodore Levitt para descrever organizações que se apaixonam por seus produtos, histórias ou líderes e esquecem de olhar para o mercado, seus sinais e mudanças.
Dois exemplos emblemáticos ilustram esse fenômeno:
Olivetti – O mito da inovação paralisada no tempo
Durante décadas, a Olivetti foi referência mundial. Combinava engenharia, tecnologia e design como poucas empresas conseguiram fazer. Criou máquinas de escrever icônicas, foi pioneira em computadores pessoais e ainda teve coragem de investir em arquitetura corporativa e humanização do trabalho.
Era uma empresa à frente do seu tempo. Mas, ironicamente, foi justamente o tempo que a derrotou.
Apegada ao prestígio de suas conquistas passadas, a Olivetti transformou sua própria história em mito. E como muitos mitos, criou a ilusão de que o passado bastava para sustentar o futuro. Não enxergou o ritmo exponencial das mudanças tecnológicas nem se adaptou à revolução digital que se anunciava. Sua liderança parecia mais empenhada em preservar o legado do que em ousar o novo.
Diferente da Benetton, que mitificou sua imagem, a Olivetti mitificou sua inteligência técnica. Mas, em ambos os casos, o resultado foi o mesmo: a desconexão com o presente e a cegueira diante do futuro.
Benetton – A marca que virou personagem de si mesma
Na década de 1990, a Benetton era sinônimo de ousadia e impacto. Suas campanhas publicitárias, eram impactantes e ilustradas com imagens intrigantes do fotógrafo Oliviero Toscani. Provocavam o mundo com flagrantes controversas e carregadas de críticas sociais — racismo, guerra, AIDS, religião. A marca ganhou status de ícone global da rebeldia estética.
Mas havia um descompasso. Enquanto a assinatura “United Colors of Benetton” ganhava força como símbolo de inclusão e ruptura, a empresa perdia capacidade de inovar no produto e de conversar com seu público real. O discurso tornou-se maior que a entrega. A comunicação virou arte pela arte — desconectada do que o consumidor buscava em uma marca de moda acessível, relevante e atual.
Em uma viagem a Buenos Aires, assisti a uma entrevista e ouvi Luciano Benetton declarar, com orgulho, que sonhava em tornar sua marca tão icônica quanto a Ferrari — mesmo com uma verba infinitamente menor. Patrocinar uma equipe de Fórmula 1 era parte dessa estratégia. Mas, no fim, a obsessão por visibilidade superou a escuta de mercado. A marca se tornou refém de sua própria imagem.
O que era vanguarda virou caricatura. E o público seguiu adiante.
Quando a cultura se torna religião
Toda organização precisa de símbolos, valores e histórias. Mas quando o símbolo vira dogma, o valor vira mantra vazio, e a liderança se fecha ao diálogo, a cultura organizacional se torna uma seita. E seitas não inovam. Repetem. Copiam. Censuram o novo.
É comum encontrar empresas lideradas por gestores vaidosos, que se consideram insubstituíveis e agem como oráculos. Não constroem sucessores, apenas admiradores. Nesse cenário, a empresa adoece. A criatividade se cala. A estratégia se torna um ritual previsível, sem alma nem futuro.
Mito ou legado?
O mito aprisiona no passado. O legado projeta o futuro. A diferença está na capacidade da liderança em entender que sua função não é ser adorado, mas guiar, escutar, inspirar e abrir espaço para o novo.
É preciso desfazer o altar da liderança tóxica, questionar os deuses de barro que ainda povoam nossas organizações e resgatar o protagonismo coletivo, onde o saber é compartilhado e o futuro é construído com humildade e escuta.
Que tipo de história sua empresa quer contar?
Em tempos de transformação acelerada, empresas mitológicas não sobrevivem. Porque o mercado não cultua lendas — ele reconhece relevância.
É hora de trocar os “golpes de espada” por empatia. De abandonar o passado glorioso que já não se sustenta e de reconstruir a cultura com base em princípios sólidos, adaptáveis e humanos.
Pare para pensar: A sua empresa cultua um líder ou constrói um legado?