Imagine entrar em um templo na Grécia Antiga. Antes mesmo de ver o altar, você se depara com um artefato curioso: uma pequena máquina que, ao receber uma moeda, libera água benta na medida exata. Não havia telas, sensores ou conexões sem fio. Apenas um engenhoso sistema de alavancas, concebido há quase dois mil anos pelo matemático Heron de Alexandria. Para o fiel, aquilo era um pequeno milagre – e o milagre acontecia ali, diante dos seus olhos, antes mesmo da experiência religiosa começar.
Heron descreveu a invenção em sua obra Pneumática. O mecanismo era simples e brilhante: a moeda caía, acionava uma alavanca, abria uma válvula e a água benta era liberada até que a moeda escorregasse, fechando o fluxo. O objetivo? Controlar o consumo e criar um momento de encantamento.
Embora na época de Heron não existisse o conceito formal de marketing, sua invenção carregava o que podemos chamar de “espírito de marketing”. Havia clareza de propósito: controlar o uso, criar encantamento e oferecer valor imediato ao fiel. Hoje chamamos isso de experiência do cliente; na época, era simplesmente uma solução engenhosa para um problema real. A essência é a mesma: compreender a necessidade, projetar uma entrega eficiente e, de alguma forma, surpreender positivamente quem usufrui.
O princípio que nunca mudou
No século I, a lógica era clara: conveniência + controle + encantamento.
No século XXI, a fórmula permanece quase a mesma, com algumas atualizações: conveniência + personalização + encantamento.
O marketing moderno continua a girar em torno desses pilares. Se antes o objetivo era entregar um recurso sagrado de forma prática, hoje é entregar qualquer produto ou serviço – do café na esquina ao streaming de filmes – de forma instantânea, confiável e com um toque de prazer.
O que temos de moderno nisso
As “vending machines” de hoje não se limitam a produtos físicos: vendem experiências, coletam dados, recomendam itens e, às vezes, até reconhecem o rosto do consumidor.
A evolução tecnológica trouxe:
- Personalização – ajustar a “quantidade de água benta” para cada cliente;
- Escalabilidade – replicar a experiência para milhões de pontos no mundo;
- Integração digital – conectar vendas, estoques e comportamento do consumidor; e
- Experiência expandida – criar momentos de encantamento em toda a jornada do cliente, não apenas no ponto de entrega.
O lado sombra
Na época de Heron, o limite era físico: a máquina só liberava água benta.
Hoje, o limite é ético: máquinas e algoritmos podem induzir consumo excessivo, manipular escolhas ou explorar vulnerabilidades emocionais.
A tecnologia tornou-se mais poderosa, mas também mais capaz de distorcer a experiência em favor de objetivos questionáveis.
E é aqui que surge a pergunta que deveria guiar qualquer profissional de marketing: estamos usando a tecnologia para servir ou para explorar?
Por trás da máquina, sempre o homem
Heron inventou uma solução para atender a uma necessidade específica, com simplicidade e inteligência. Séculos depois, continuamos a criar máquinas e sistemas que tornam a vida mais conveniente. Mas há uma diferença essencial: a escala e o impacto do que fazemos hoje são incomparavelmente maiores.
No fim das contas, a máquina é apenas um meio. Quem define se ela vai inspirar ou explorar é a mente que a concebe e a mão que a programa.
A tecnologia mais poderosa de todas continua sendo a ética – e, com ela, a capacidade de criar experiências que deixem um legado positivo.
Heron usou sua invenção para oferecer algo simbólico e valioso, reforçando a experiência espiritual de quem entrava no templo.
Nós, hoje, temos máquinas capazes de entregar quase qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar.
A questão é: estamos entregando apenas produtos ou estamos entregando significado?
Reinaldo Martinazzo