Quando a Cultura Vira Refém da Narrativa.
A Janela de Overton, conceito oriundo da ciência política, descreve o intervalo de ideias socialmente aceitáveis em determinado momento. Ela delimita o que é considerado razoável, discutível e viável — e o que é, por outro lado, impensável, inaceitável ou radical.
Essa janela não é fixa. Ela se move conforme as transformações culturais, sociais e econômicas, redefinindo o que pode ou não ser defendido publicamente.
O que poucos percebem é que esse conceito não está restrito ao universo político. No ambiente corporativo, a Janela de Overton se manifesta de maneira poderosa — e, muitas vezes, silenciosa. Ela define os limites do discurso aceitável dentro das organizações: aquilo que pode ser dito, debatido, questionado ou transformado. Mais que isso, ela molda o que é possível ser feito em termos de gestão, cultura e estratégia.
O ponto crítico — e talvez perigoso — é que esse mecanismo tem sido usado por alguns líderes e consultores não como ferramenta de transformação responsável, mas como atalho para desconstruir culturas, destruir legados e fabricar novas narrativas organizacionais, muitas vezes desconectadas da essência da empresa.
Quando a cultura se torna refém de uma narrativa forçada, o risco não é apenas uma transformação mal conduzida. O risco é a erosão da identidade, do pertencimento, da reputação e, em última instância, da própria sustentabilidade do negócio.
O Que é a Janela de Overton?
A Janela de Overton foi formulada pelo pesquisador americano Joseph P. Overton, que identificou que as ideias consideradas aceitáveis pela sociedade variam dentro de um espectro, dividido em seis níveis:
- Impensável
- Radical
- Aceitável
- Sensato
- Popular
- Política Pública
Ideias podem transitar nesse espectro conforme o tempo, os acontecimentos e, sobretudo, as narrativas que moldam a opinião pública.
O que era visto como absurdo ontem, hoje pode ser defendido como necessário. E, inversamente, o que era senso comum pode se tornar inaceitável.
A Janela de Overton, portanto, é a moldura que delimita os contornos do que pode ou não ser discutido, aceito e implementado.
A Janela de Overton Aplicada às Organizações
Se aplicarmos essa lógica ao ambiente empresarial, percebemos que também existem, dentro das empresas, temas, práticas e discursos que circulam entre esses mesmos níveis:
- Há ideias vistas como impensáveis, que sequer são colocadas na mesa.
- Outras, como radicais, geram desconforto.
- Algumas tornam-se aceitáveis, entram no debate.
- Evoluem para sensatas, ganham adesão.
- Tornam-se populares, quase obrigatórias.
- Até que se consolidam como política interna, práticas formais e inquestionáveis.
Esse movimento é natural nas organizações. Porém, o alerta reside quando esse processo é conduzido de forma artificial, forçada ou manipuladora.
Imagine uma empresa cuja cultura sempre foi conservadora, orientada à estabilidade, ao controle e à hierarquia. De repente, novos executivos chegam propondo “inovação disruptiva”, “flexibilidade extrema”, “modelo ágil”, “propósito ESG” — sem que haja uma ponte consistente entre o passado e o futuro.
Não se trata de negar a evolução. O problema surge quando se tenta destruir o que existe como estratégia para construir algo novo, sem alinhamento, sem preparação, sem respeito pela identidade construída.
Quando a Mudança Vira Manipulação
É nesse ponto que a Janela de Overton se torna uma ferramenta — consciente ou inconsciente — de manipulação organizacional.
O ciclo geralmente segue este roteiro:
- Desqualificar o Passado:
“Essa cultura é ultrapassada”, “isso não cabe mais no mundo atual”, “se não mudarmos, estamos mortos.” - Criar uma Crise Narrativa:
A cultura atual passa a ser vista como um problema a ser combatido, não como um ativo a ser evoluído. - Introduzir um Novo Discurso:
Implanta-se uma nova narrativa que muitas vezes é incoerente com a história, o DNA e os valores que sustentaram a organização até então. - Pressionar pela Adoção:
Programas de mudança são impostos de cima para baixo. Quem resiste é visto como “problema”, “antiquado”, “resistente à mudança.” - Resultado:
Colapso da identidade, desengajamento, perda de talentos, erosão da reputação, conflitos internos e, em casos extremos, até a destruição da marca.
O Preço da Incongruência
Empresas que tentam deslocar sua Janela de Overton sem responsabilidade, atropelando seus pilares culturais, colhem uma série de efeitos colaterais:
- Desconexão Interna:
Colaboradores não se reconhecem mais na organização. Sentem-se órfãos de significado. - Cinismo e Desconfiança:
Quando o discurso não se alinha às práticas, nasce o cinismo organizacional. “Aqui, todo mundo finge que acredita.” - Perda de Talentos:
Profissionais que valorizam a coerência deixam a empresa. Ficam os que aceitam o jogo político, não necessariamente os mais competentes. - Erosão da Marca:
Clientes percebem a dissonância entre o que a empresa diz e o que efetivamente faz. - Colapso de Performance:
A desorientação cultural leva à queda de produtividade, inovação, engajamento e, consequentemente, dos resultados.
Como Mudar com Responsabilidade (Sem Destruir a Cultura)
Sim, mudar é necessário. Mas existem caminhos éticos, responsáveis e inteligentes para isso. O processo não começa pela destruição, mas pela ressignificação.
Os princípios de uma transformação cultural saudável:
- Diagnosticar Antes de Prescrever:
Entender profundamente o que da cultura deve ser preservado, atualizado ou, de fato, transformado. - Construir Pontes, Não Rupturas:
O novo precisa dialogar com o legado. A transformação começa no respeito ao que trouxe a empresa até aqui. - Narrativas Verdadeiras:
Comunicar mudanças de forma honesta, sem criar falsas urgências ou demonizar o passado. - Engajamento Real:
Envolver todos os níveis da organização no debate, na construção e na validação do novo caminho. - Alinhamento entre Cultura, Estratégia e Propósito:
O discurso externo precisa refletir uma prática interna coerente. Branding não é cosmética — é cultura traduzida em reputação. - Gestão da Mudança Estruturada:
Ferramentas, metodologias e acompanhamento constante. Não se muda cultura apenas com slogans ou eventos.
O Poder e o Perigo das Narrativas
Narrativas são poderosas. Elas constroem realidades. Elas moldam percepções. Elas definem o que é aceitável, desejável, possível.
No mundo corporativo, a Janela de Overton se move, sim. Mas o papel dos líderes não é empurrá-la ao sabor de modismos ou da vaidade de “deixar sua marca.” É, antes de tudo, compreender que cultura, reputação e propósito são ativos inegociáveis.
Deslocar a janela exige responsabilidade, verdade, método e, acima de tudo, respeito pela história, pelas pessoas e pelos fundamentos que sustentam a organização.
Porque, no final das contas, quem manipula uma narrativa para desconstruir uma cultura, corre o risco de desconstruir também o próprio futuro da empresa.
Reinaldo Martinazzo